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SUPERANDO O MITO DA VERDADE REAL

“Eu já passei por todas as religiões

Filosofias, políticas e lutas

Aos 11 anos de idade eu já desconfiava

Da verdade absoluta.”

(As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor – Raul Seixas)


Não são poucas as doutrinas de processo penal e, consequentemente, os juristas em geral que apregoam ter o processo penal a função de buscar a verdade real. Para isso, sustentam que o juiz está autorizado a ir além das provas existentes no processo, na busca do fato “verdadeiro”.


Tenho compartilhado com meus alunos que a verdade real é um sofisma, um embuste, uma artimanha para “legitimar” a produção de provas de ofício pelo juiz, até mesmo antes de oferecida a ação penal (art. 156 CPP). Se observarmos as doutrinas processuais tradicionais, encontraremos a posição de que a função do processo penal é buscar a verdade real, a qual, para ser desvelada, autoriza o juiz a não ficar adstrito à prova trazida pelas partes, podendo, de ofício, sair à procura de elementos probatórios que possam “esclarecer o fato”.


O problema é que a verdade real pressupõe uma verdade absoluta, que está no todo, devendo o juiz, para encontrá-la, conhecer a totalidade dos fatos, absolutamente todas as variáveis que envolveram o crime o que, sejamos francos, é algo teratológico.


Achar que isso é possível (encontrar a verdade real/absoluta) me aparenta certa ingenuidade ou até mesmo traquinice.


Ingenuidade, pois o processo penal não tem por função buscar a verdade real e tampouco fazer justiça. O processo penal tem por função: 1) instrumentalizar a aplicação do direito penal; 2) legitimar a aplicação da pena, garantindo os direitos do acusado e; 3) reproduzir o fato aparentemente criminoso pretérito, por meio da prova.


Ou seja, o processo penal tem caráter instrumental.


Jamais o processo penal teve a pretensão de fazer “justiça”, até porque esta categoria é subjetiva e incerta quanto à sua extensão. Tampouco tem a prepotência de buscar a verdade real, absoluta. Esta é inalcançável, não nos pertence.


Ora, se aceitarmos a ideia de que o processo penal busca a verdade real, tendo o juiz o poder de buscar, mesmo de ofício, a prova que demonstre esta verdade, então toda a sentença penal, por conclusão lógica, será absolutamente verdadeira, representando o que realmente ocorreu. Com esta premissa, a sentença não poderá ser modificada em grau de recurso, pois ela compreendeu e captou os fatos na sua totalidade.


Logicamente que assim não ocorre. Muitas sentenças são reformadas em grau de recurso, onde o tribunal ad quem, analisando as mesmas provas, conclui diferentemente do juízo ad quo. Então, com quem está a verdade agora? Será que alguém está mentindo? Se a decisão de primeiro grau, onde o juiz fez prova de ofício, reproduziu a verdade real (absoluta), como pode esta “verdade” não ser aceita pelo tribunal? O que era verdade passou a ser inverdade?


A sentença judicial representa simplesmente uma crença do juiz. Ele conclui sobre aquilo que as partes lhe demonstraram por intermédio da prova (e prova é somente o que for produzido em contraditório judicial, vide artigo 155 CPP). A sentença judicial é um posicionamento fundamentado que o juiz é obrigado a proferir, mas o quanto este posicionamento representa o que realmente ocorreu ninguém sabe.


A defesa desta ingênua ideia também é uma traquinice que, no fundo, pode não ser tão ingênua assim. Matreiramente sustenta-se que para buscar a verdade real o juiz necessita produzir provas de ofício, tanto que o art. 156 do CPP prevê esta prática.


Com esta autorização, quebrada está a imparcialidade do juiz, jogando-se às favas o sistema acusatório previsto na CRFB/88 (o artigo 129, inciso I, garante a exclusividade da acusação por parte do MP), transformando o CPP em um instrumento inquisitivo, onde a gestão da prova está nas mãos do julgador, podendo agir também enquanto acusador, tal qual agia-se na época da inquisição (Geraldo Prado, Aury Lopes Jr., Jacinto Nelson de Miranda Coutinho).


Passados 33 anos da Constituição Federal ter estabelecido o sistema acusatório (juiz imparcial), ainda temos dificuldades de assimilar esta quebra de paradigma, insistindo na verdade real e na produção de provas de ofício pelo juiz.


Mas, aos poucos, este mito está sendo deixado de lado. Aos poucos perceberão que o processo penal não tem por função buscar a verdade, mas tão somente ser um instrumento de aplicação do direito material e de controle das garantias fundamentais individuais. Aos poucos perceberão que a gestão da prova não pode ficar a mercê do juiz, sob pena de quebrar a imparcialidade exigida pela CRFB/88 e ficará para traz, na memória que deve ser esquecida, a época em que o CPP autorizava o juiz a fazer provas de ofício sob o falso manto da verdade real.

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